segunda-feira, 31 de maio de 2010

Usina de Problemas

Por Diego Dacax

http://www.rollingstone.com.br/edicoes/42/textos/usina-problemas-grupo-votorantim-cba-hidreletricas/


Detentor da maior área de preservação contínua da mata atlântica brasileira e o pior idh de São Paulo, o Vale do Ribeira se divide entre a promessa de desenvolvimento e a ameaça socioambiental que a construção de uma usina hidrelétrica pode levar à região.



Miguel Erat Woner anda desanimado com a vida, e tem suas razões para tanto: "Se quiser amarrar um cavalo no meu quintal, não dá, tem que amarrar no do vizinho. Aqui não tem espaço pra nada e está tudo desbarrancando. Eu tenho que plantar banana em terreno dos outros. Tenho que depender de favor pra plantar".


O desabafo do senhor de 61 anos vem acompanhado de uma tosse que há mais de cinco meses atrapalha os seus diálogos. A conversa se desenrola em um cômodo que serve de sala, copa e cozinha de uma humilde morada de madeira que nem forro tem. O local é bastante diferente da casa onde Miguel e sua família viviam anteriormente - em uma confortável e bem equipada fazenda em Ribeira (SP), de onde tiravam seu sustento por meio da agricultura. Os Woner só foram obrigados a abandonar essa antiga residência porque parte do local acabaria debaixo d'água.


Miguel e a esposa, Margarida, passaram a vida toda em Ribeira, na divisa de São Paulo com o Paraná. Moravam com os três filhos na fazenda São Pedro, uma das mais bem estruturadas da região. Não gastavam com moradia ou alimentação e ainda ganhavam cerca de quatro salários por mês. Tudo ia bem até que, no final dos anos 80, começaram a aparecer os primeiros barcos motorizados, coisa que, àquela época, nunca havia sido vista no rio que corta a cidade, o Ribeira de Iguape. Soube-se que a Companhia Brasileira de Alumínio, a CBA, braço do Grupo Votorantim, pretendia construir uma usina hidrelétrica na região, denominada Tijuco Alto. Com a barragem, seriam alagadas áreas dos municípios de Ribeira, Itapirapuã Paulista (ambas em São Paulo), Adrianópolis, Doutor Ulysses e Cerro Azul (no Paraná)


Sob a ameaça de ter parte de seu território tomado pelas águas, a fazenda São Pedro foi vendida à CBA, e a família Woner foi forçada a deixar o local em 1992. O dinheiro do acerto de contas foi o suficiente para que comprassem o terreno do casebre onde vivem atualmente, no bairro de Ilha Rasa. Sem condições para plantar, o casal sobrevive com o dinheiro da aposentadoria de dona Margarida. Sem oportunidades de emprego na cidade, dois de seus rebentos tentam a vida em Curitiba. O terceiro filho permanece em Ribeira, desempregado. Mesmo ainda sem ainda ter sido construída, a barragem já atingiu a família Woner. E histórias como essas se repetem com frequência na região.


Palco do drama, o Vale do Ribeira constitui a maior área de preservação contínua de Mata Atlântica do Brasil - com cerca de 2,1 milhões de hectares do bioma. Situada ao sul do estado de São Paulo e ao norte do Paraná, a região possui um dos maiores complexos de cavernas do país, concentrando mais de 270 cavidades. A fauna e a flora locais abrigam diversas espécies em extinção. Parte de sua área está inserida no território da Mata Atlântica sudeste, tombada pela Unesco como Patrimônio Natural da Humanidade, em 1999. Oito anos mais tarde, a Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou um projeto, de autoria do deputado Raul Marcelo (PSOL), que também tombava o Ribeira de Iguape, último grande rio sem barragem no estado. No ano seguinte, o governador José Serra (PSDB) o vetou.


Em contrapartida à riqueza natural, economicamente a região do Vale do Ribeira é a mais pobre do estado de São Paulo. Seu IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), 0747, é inferior ao do estado de Roraima, que figura 15 posições abaixo de São Paulo no ranking. Embora o plantio da árvore de pinus e a criação de gado venham crescendo expressivamente, as principais atividades econômicas da região ainda são o cultivo de banana, chá preto e a pesca. Nas estradas sinuosas que levam às cidades do Vale, áreas preservadas se misturam a partes tomadas pela monocultura de alguns desses itens.


"Não há uma proposta para a formação de profissionais para o turismo sustentável, que é uma das potencialidades da região", relata Tamara Carolina da Silva, funcionária do Posto de Informações Turísticas de Eldorado. No que diz respeito às políticas públicas voltadas às diferentes áreas, é senso comum entre os entrevistados que elas são quase inexistentes ou ineficazes por lá. "O Vale do Ribeira tem sido um laboratório de políticas públicas não muito bem-sucedidas", avalia Pedro Roberto Jacobi, professor titular do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da USP. Para se conseguir um exame ambulatorial mais complexo, os moradores da região esperam meses. Só há uma universidade pública em todo o Vale do Ribeira, localizada no município de Registro.


A topografia acidentada e as diversas áreas de preservação ambiental não permitem que o Vale do Ribeira acompanhe a média de desenvolvimento das demais regiões do estado. Entre os moradores da área, é consenso que o local deve se desenvolver com base no turismo sustentável e na agricultura. Mas há divergências se esta última deve ser conduzida por pequenos agricultores ou por grandes proprietários.


Motivo de discussões que às vezes ultrapassam os limites verbais, a futura usina Tijuco Alto é vendida como a solução para os problemas locais. Mas há quem a veja como o golpe de misericórdia para o Vale.


O interesse da companhia brasileira de Alumínio pela barragem remonta a 1987, cinco anos antes da trágica reviravolta na vida da família Woner. Naquele ano, com o intuito de gerar energia para sua fábrica na cidade de Alumínio, localizada na região de Sorocaba (SP), a empresa solicitou a autorização para o projeto de Tijuco Alto junto ao extinto Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (Dnaee). Gerar 50% de sua energia é parte da política de desenvolvimento da CBA, que depende da eletricidade para fabricar produtos como telhas, chapas, bobinas e vergalhões de alumínio. A outorga para a obra foi concedida em 1988. Ignorando a legislação vigente, no ano seguinte a CBA deu entrada no licenciamento diretamente em São Paulo e no Paraná. Por se tratar de um rio federal, que pertence aos dois estados, o procedimento deveria ser feito através do Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis). Mesmo assim, já em 1993 aconteceram as primeiras audiências públicas acerca do empreendimento. Somente cinco anos mais tarde a empresa, pertencente ao Grupo Votorantim, reconheceu a competência do órgão e iniciou o processo junto a ele.


Assim que a CBA deu entrada no licenciamento da obra, em 1989, a população da região se organizou em torno do MOAB, o Movimento dos Ameaçados por Barragens, resistência popular que há mais de 20 anos luta contra o desenvolvimento do projeto. À época, outras três usinas - estas não pertencentes ao Grupo Votorantim - assombravam a região: Itaóca, Funil e Batatal. Seus projetos estão atualmente parados, mas elas ainda são vistas como um perigo latente. "Não temos dúvidas de que se construírem Tijuco Alto, que está mais avançada, isso abrirá precedente para as demais usinas", afirma a freira Angela Biagioni, militante do MOAB desde 1990. O bairro onde Ângela mora em Eldorado, Vila Nova Esperança, seria justamente o local onde os trabalhadores ficariam abrigados durante a construção da hidrelétrica de Batatal.


Após uma série de eventos, incluindo dois EIA/ RIMA (Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental), em 1997 e 2003, que foram reprovados pelo Ibama, a CBA foi obrigada a apresentar um novo estudo, o que só foi ocorrer em outubro de 2005. Nesse meio-tempo, a população local, que seria a principal afetada pela barragem, não era informada e tampouco consultada acerca do andamento do processo. Pelo contrário: segundo relatos, os moradores da região estariam sendo ludibriados pela empresa.


A cerca de 70 quilômetros de Ribeira está localizada a comunidade quilombola de Pedro Salu. Uma das habitantes, Plarinda Andrade de Matos, 50 anos, se recorda que no início dos anos 2000 - mais de uma década após o processo de licenciamento da hidrelétrica ter se iniciado -, representantes da CBA tenta ram contato com os moradores do local. "Depois que umas moças do Ministério Público de São Paulo e da Secretaria do Meio Ambiente de Brasília passaram por aqui para falar do mal que a obra poderia trazer, eles [representantes da CBA] apareceram. Falaram que não era pra acreditar nas moças, que a obra não ia atrapalhar nada. Vieram tapear a gente. Mas a gente já tava informado", ela relata.


Tijuco Alto não afetaria diretamente a comunidade de Plarinda, mas ela teme o impacto que a usina pode causar em toda a bacia hidrográfica do Ribeira de Iguape. Segundo um relatório emitido em 1993 pela Cetesb (Companhia de Tecnologia e Saneamento Ambiental), a obra da usina, entre outros prejuízos, pode colaborar para a contaminação das águas por metais pesados - o rio já está contaminado por chumbo -, além de diminuir a produção pesqueira, alagar uma área de 11 mil hectares e inundar duas cavernas.


A inundação dessas cavidades, aliás, é um dos motivos pelos quais a licença para a obra ainda não foi concedida. O outro motivo é relacionado à revalidação do direito ao uso dos recursos hídricos do rio, que depende da aprovação da Agência Nacional de Águas (ANA).


No início dos anos 90, o agricultor Miguel Woner também foi procurado pela CBA. "Me prometeram dois alqueires de terra com água, luz elétrica e três anos de supermercado pago", ele conta. Além disso, Miguel recorda que a CBA chegou a patrocinar um churrasco e uma viagem para ele e outras pessoas da região até São Paulo. Na ocasião, eles teriam ido participar de uma manifestação em prol da barragem.


"Nessa época, eles [a CBA] precisavam de apoio popular, queriam vender o peixe de qualquer jeito, prometiam de tudo", avalia José Roberto Pereira (PT), um dos nove vereadores do município de Ribeira e um dos principais opositores ao projeto, que afirma que a cidade teve uma considerável evasão populacional desde a ameaça da barragem. Atualmente com cerca de 3,5 mil moradores, Ribeira já chegou a ter quase cinco mil habitantes. "A maior parte das pessoas foi embora por conta dessa história da usina", denuncia o vereador. "A CBA já tem essa dívida com a gente."


Pereira alega que, no fim dos anos 80, com os rumores de que a barragem inundaria diversas propriedades, os moradores começaram a vender suas terras a preços até três vezes inferiores aos praticados. Ele conta que atravessadores as compravam e, em vez de registrá-las em seus nomes, tornavam-se procuradores e as vendiam direto para a empresa do Grupo Votorantim.


"Tinha gente que andava a cavalo com uma máquina de escrever pendurada só pra comprar terra na zona rural e revender para a CBA. A população não sabia direito o que tava acontecendo. Todo mundo se sentia ameaçado e, com medo de perder a propriedade, vendia ela por qualquer valor", relata Pereira. "Lá por 1994, 95, o pessoal começou a perceber as falcatruas e a vender por um preço melhor. Quando a propriedade pertencia a um posseiro que não tinha a documentação regularizada, a empresa oferecia um emprego para a pessoa e fazia ela mudar para perto do trabalho. O cara ficava uns cinco, seis meses na empresa e depois era mandado embora. Era o tempo necessário para a CBA comprar o terreno direto com o proprietário de papel passado, que, pela lei, já tinha perdido os direitos da terra por usucapião. Muitas das pessoas que foram vítimas disso hoje vivem em favelas, como a [Vila] Zumbi, em Curitiba."


Leonardo Guerra Lourenço Gomes, da controladoria da Votorantim Energia, setor responsável pelo projeto, aceitou conversar com a reportagem por telefone, mas desistiu da ideia logo no início da entrevista. Procurada durante mais de dois meses para falar sobre o assunto, a empresa não negou as denúncias do vereador. Sobre elas, a CBA, por meio de sua assessoria de imprensa, se restringiu a afirmar que adquiriu 377 imóveis de 286 proprietários, somando cerca de 60% das terras necessárias ao empreendimento. A legislação vigente até 1999 determinava que o empreendedor deveria comprar ao menos 70% das terras a serem utilizadas. A atual legislação, no entanto, proíbe que a empresa faça isso antes de a licença de instalação ser emitida.


Não podendo mais comprar terras, a CBA vem financiando a campanha de diversos políticos da região. Na eleição passada, a empresa do Grupo Votorantim doou um montante de R$ 100 mil a diversos candidatos a prefeito das cidades do Vale do Ribeira. Nos municípios de Ribeira e Adrianópolis, por exemplo, candidatos rivais receberam doações da Companhia. João Manoel Pampanini, atual prefeito da cidade paranaense, foi beneficiado com a verba. Gidioni de Oliveira Macedo, prefeito de Ribeira, também. Ambos são filiados ao PT. Em Eldorado, onde está sediado o MOAB, José Arai da Selva Soares (PMDB) recebeu R$ 6 mil da empresa, sendo o único vereador da região a se beneficiar com uma doação da CBA.


Através de sua assessoria, a empresa afirmou que "as doações a partidos políticos e seus candidatos são instrumentos legítimos que fortalecem o processo eleitoral e as instituições democráticas do país".


Carregando um histórico de falta de diálogo e atitudes questionáveis, a CBA realizou novas audiências públicas em julho de 2007. Dessa vez, com o aval do Ibama. Os eventos aconteceram nos municípios de Cerro Azul, Adrianópolis, Ribeira, Registro e Eldorado.


Miguel Woner esteve na audiência em Ribeira, mas, apesar de ser contra a obra, não se manifestou: "Eu ia levantar no meio de um povão daquele? Não tenho cultura de nada, não sei nem conversar direito, ia falar o quê?", desculpa-se.


"Mesmo tendo subutilizado o microfone, a população presente nos eventos foi massivamente contrária ao projeto", afirma a freira Angela Biagioni.


Antes e depois das audiências, foram protocolados vários documentos de apoio e repúdio à obra. Os favoráveis vêm de organizações como a Associação dos Bananicultores do Vale do Ribeira e do Sindicato Rural de Registro. Já os contrários foram protocolados por entidades como a Associação Sindical dos Trabalhadores da Agricultura Familiar da Região do Vale do Ribeira (ASSTRAF), pelos participantes da assembleia popular Luta pela Terra no Vale do Ribeira e pelas comunidades quilombolas da região


As principais críticas ao EIA/RIMA dizem respeito ao fato de ele não levar em conta a mata nativa, que se regenerou após a população abandonar o local, e à própria estrutura do estudo, que é feito por uma empresa contratada pelo empreendedor. "Eu até concordo que a Companhia é que deve bancar o projeto, mas ela não deveria poder escolher a empresa que vai fazer o estudo", contesta o vereador José Roberto Pereira.


Além do MOAB, mais de dez entidades, entre sindicatos de trabalhadores rurais, associações quilombolas, organizações ambientais e colônias de pescadores, se opõem à barragem. Todos questionam a abrangência dos danos ambientais da obra e os prejuízos que ela pode acarretar aos moradores. Mesmo com a população organizada sendo majoritariamente contra o projeto, o Ibama emitiu um Parecer Conclusivo favorável ao mesmo em fevereiro de 2008. No documento, o órgão afirma "que o empreendimento UHE Tijuco Alto apresenta aspectos positivos que podem ser potencializados, e impactos negativos que podem ser evitados, mitigados ou compensados pela implementação dos programas ambientais adequados [sic]".


No mesmo período, o Departamento de Avaliação de Impacto Ambiental (DAIA) da Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo emitiu um parecer técnico com diversas críticas ao Estudo de Impacto Ambiental. Uma delas diz respeito ao Programa de Controle Ambiental das Obras apresentado no estudo, considerado "muito genérico e superficial". Além disso, por meio de seu parecer, o DAIA afirma que "alguns impactos não foram devidamente avaliados, e para alguns impactos não foram propostas medidas mitigadoras/compensatórias adequadas". Outra observação aponta ainda que "em função de escala de trabalho e de nível de detalhamento do projeto [o EIA] não permite uma apreciação mais profunda dos impactos ambientais do empreendimento".


Para o professor Jacobi, o maior problema de Tijuco Alto é, de fato, o impacto ambiental da obra. "Esse aspecto não pode ser negligenciado", ele alerta.


Atualmente, não se sabe ao certo se o projeto de Tijuco Alto será levado adiante. Em uma certa noite de sexta-feira, em uma pastelaria no centro de Eldorado, município onde está a sede do MOAB e a famosa Caverna do Diabo, a incerteza ficou mais clara. Por lá,Antonio e Wagner, os irmãos que são proprietários e funcionários do estabelecimento, não sabem dizer se a usina vai ser mesmo construída e evitam falar sobre o assunto. Ao se sentir mais à vontade, no entanto, Antonio deixa seu posicionamento implícito: "Tem que ver pra quem que é essa usina, né? Essa energia vai pra quem? Para as cidades da região é que não vem". De fato, apesar de fazer parte do SIN (Sistema Integrado Nacional), a princípio toda a produção de Tijuco Alto seria destinada à fábrica da CBA, em Alumínio.


Já o empresário Antonio Cunha, dono de uma pousada na região, diz acreditar que a barragem atrairia mais turistas, geraria mais empregos e colaboraria para o desenvolvimento do Vale, que é a parte mais pobre do estado de São Paulo. "O MOAB e os quilombolas é que emperram a usina", reclama. Cunha ainda menciona o controle das cheias nos municípios que ficam rio abaixo como uma das vantagens da barragem. Em seu parecer, o Ibama também destaca esse aspecto como um dos benefícios que a obra pode levar ao Vale. E esse é, de fato, um ponto importante para a região, que ainda guarda amargas lembranças da enchente que a assolou em 1997. Mas apesar de essa ser a benfeitoria mais palpável do empreendimento, ela é pouco citada pelos entusiastas da barragem, que centram o foco de seus discursos no desenvolvimento econômico - um aspecto sedutor em se tratando da região mais pobre do estado mais desenvolvido do país.


Com base em estudos feitos pela própria CBA, a ONG Instituto Socioambiental (ISA) aponta que a ideia de que a obra impulsionará o desenvolvimento da região é questionável. Durante a construção da barragem, que levará cinco anos, deve haver um pico de ofertas de emprego que abarcará 1,5 mil pessoas. Mas apenas cerca de 150 desses empregados serão moradores das cidades vizinhas. Concluído, o empreendimento deverá gerar apenas 123 vagas de trabalho, em sua maioria ocupadas por técnicos - os quais, geralmente, vêm de fora. Além disso, a vinda de mais de mil trabalhadores de outras áreas pode ocasionar, a médio e longo prazo, uma série de problemas. Inicialmente, deve haver uma movimentação dos setores de comércio e serviços dos municípios da vizinhança, aquecendo a frágil economia local. Após o fim da obra, porém, há o risco de muitas dessas pessoas se instalarem na região. "Isso pode sobrecarregar os serviços públicos. A gente não tem hospital, escola, nem emprego permanente pra esse povo todo. Depois da barragem eles vão fazer o quê?", questiona o vereador Pereira.


"A construção de uma hidrelétrica é temporária", complementa o professor Jacobi. "Ela utiliza mão de obra durante um tempo e depois acaba. Pensar o desenvolvimento em cima disso é errado, pode criar uma lógica urbana parasitária, que não tem condições de se desenvolver." Para ele, um dos caminhos possíveis para o desenvolvimento socioeconômico da região é o fortalecimento das cooperativas e melhores condições para que os pequenos agricultores e as pessoas de baixa renda obtenham créditos.

Enquanto não é tomada a decisão sobre se a obra acontecerá ou não, as incertezas pairam sobre os moradores do Vale do Ribeira. Em relação ao comportamento da população no que diz respeito à barragem, a tendência é que os mais abastados se posicionem favoravelmente e os mais pobres sejam contrários. Essa lógica faz algum sentido se levarmos em conta as histórias do empresário Antonio Cunha e do agricultor Miguel Woner. A pousada do primeiro é uma das mais bem equipadas da região. A casa do outro mal tem um quintal. Além da questão de classe, os dois diferem no que diz respeito à trajetória de Tijuco Alto. Para Antonio, o projeto trará o progresso. Para Miguel, assim como para muitos outros habitantes, já causou prejuízo.

domingo, 30 de maio de 2010

Brasil está exportando os erros de Belo Monte e Jirau para o Peru

Representantes de organizações peruanas participaram de um encontro com autoridades do Itamaraty, na última quinta-feira (20), para questionar a assinatura de um acordo entre Brasil e Peru, voltado para a construção de mega-hidrelétricas na Amazônia peruana.

Fabíola Munhoz Amazonia.org.br, 25-05-2010.

O tratado, previsto para ser firmado em junho deste ano, abrange a construção de cinco usinas na floresta amazônica do Peru, a um custo de R$ 25 bilhões. As obras seriam realizadas por empreiteiras brasileiras, na ausência de consultas aos povos indígenas afetados e sem qualquer análise de impactos socioambientais.

Cesar Gamboa, que representa a organização peruana Derechos Ambientales y Recursos Naturales, participou da reunião com a diplomacia brasileira e concedeu uma entrevista exclusiva ao siteAmazonia.org.br. Na conversa, ele fala sobre os possíveis danos do acordo internacional energético e comenta sua participação do seminário "Políticas Públicas e obras de infra-estrutura na Amazônia: Cenários e desafios para a governança socioambiental", que aconteceu dos dias 20 a 21 de maio em Brasília.

Eis a entrevista.

Por que o senhor é contra o projeto de Brasil e Peru para a construção de hidrelétricas na Amazônia?

Tal como está o tratado energético, construindo hidrelétricas na Amazônia, seriam promovidos impactos diretos e indiretos aos ecossistemas amazônicos. Pelo menos no Peru, o tratado deveria passar pela aprovação do Congresso da República, mas as autoridades peruanas, que estão negociando o acordo com o Brasil, assinalam que é desnecessária a aprovação pelo Congresso, violando a Constituição do Peru. Com isso, possivelmente, assim que esse tratado entre em vigência, sem aprovação do Congresso, qualquer autoridade subnacional ou regional poderia declarar a inconstitucionalidade do tratado, gerando um clima de insegurança jurídica.

Que ações a organização que o senhor representa vem tomando na tentativa de impedir esse acordo energético?

Com relação ao tratado, estamos buscando diálogo com representantes do Ministério das Minas e Energia e do Itamaraty, para que possam escutar nossas preocupações com relação ao tipo de acordo e a possibilidade de construir hidrelétricas na Amazônia peruana. Mas eles não estão compreendendo a realidade dos possíveis impactos ambientais e sociais.

Desde a primeira versão do projeto, de março, houve algumas mudanças, mas consideramos isso uma maquiagem. Não foi uma mudança para assegurar que se evite qualquer possível impacto ao meio ambiente e às populações.

Quais serão os principais impactos negativos do acordo energético?

O caso mais emblemático diz respeito à empresa brasileira Eletrobras, que tem a concessão temporária da usina de Inambari, no Peru. Essa hidrelétrica afetaria todo o ecossistema do rio Inambari e provocaria o desalojamento involuntário das populações locais, que seriam afetadas pelo represamento e o alagamento de suas terras. E o governo brasileiro e suas autoridades também não compreendem o impacto desse possível acordo.

Organizações peruanas e brasileiras estão trocando informações sobre os erros que vêm sendo produzidos no Brasil por meio de Belo Monte[usina no rio Xingu (PA)], Jirau [usina no rio Madeira (RO)], e outros projetos hidrelétricos que funcionam há anos. E vemos que estão exportando esse modelo ao Peru. O importante é trocar informação e fazê-la chegar aos governos peruano e brasileiro.

Quais serão os próximos passos da luta contra o acordo?

Queremos saber que tipo de acordo será feito no dia 15 de junho, em Manaus, e dar ciência à opinião pública sobre esse texto e os seus possíveis impactos à Amazônia peruana, por meio de pronunciamentos, cartas, e também diálogo com os governos peruano e brasileiro.

A organização indígena Care [Central Ashaninka do Rio Ene], que vai ser afetada por uma hidrelétrica, cuja concessão temporária foi dada a uma empresa brasileira, vai fazer manifestações e pronunciamentos, que serão entregues aos funcionários da chancelaria brasileira. Na primeira semana de junho, também faremos pronunciamentos sobre os riscos desse possível acordo, que não inclui garantias ambientais e sociais.

No Peru, estamos solicitando aos governos subnacionais que peçam na Justiça uma declaração de inconstitucionalidade do acordo. E é possível que isso aconteça. Pelo menos, alguns governos regionais têm expressado isso.

Qual a importância deste evento que reúne organizações peruanas e brasileiras para debater grandes empreendimentos na Amazônia?

O encontro é importante porque nos permite discutir em nível científico, jurídico e legal as implicâncias da governabilidade de projetos extrativistas e, agora, de infraestrutura na Amazônia, como um todo, não só do Brasil, do Peru, ou da Colômbia.

Discutimos essas ações na Amazônia, não só como espaço ecossistêmico de biodiversidade, mas também lugar onde vivem pessoas e povos, como os indígenas. Além disso, o encontro nos permite pensar estratégias para corrigir políticas públicas e práticas privadas e as ameaças que a Amazônia sofre, com a intervenção do homem e o projeto econômico, como vem acontecendo.

Você acredita que o governo peruano, assim como o brasileiro, não tem levado em conta os impactos ambientais de suas políticas voltadas à Amazônia?

O governo peruano prioriza dados de crescimento econômico, mas não está contabilizando os custos futuros que esse tipo de intervenção trará. É uma visão muito parcial da realidade. Estamos buscando que os empreendedores se sensibilizem e integrem esses custos sociais e ambientais na análise macroeconômica, em operações concretas, como projetos de infraestrutura.

Os governos chamados de progressistas, como são o Brasil e o Peru, priorizam a política econômica, mas não consideram aspectos essenciais, como são o meio ambiente e uma agenda sobre mudanças climáticas, e há na sua retórica política essa incoerência para as futuras gerações.