quinta-feira, 31 de julho de 2008

Águas do Vale: Para quem vale?


Talvez seja um pouco difícil de imaginar, para quem mora distante do litoral, que as águas dos rios cheguem ao mar. Muitos rios se ligam a outros rios antes de chegarem no mar. Na Bacia hidrográfica do Ribeira de Iguape, no baixo Ribeira, há a conexão e formação do Complexo Estuarino-Lagunar de Iguape-Cananéia-Paranaguá, mais conhecido como Lagamar. Um estuário que tem mistura de água doce dos rios, nesse caso principalmente do Ribeira, com a água salgada do mar, formando extensos manguezais.

Lagamar

O Lagamar abrangeparte dos municípios de Iguape, Ilha Comprida, Pariquera-Açu e Cananéia, no estado de São Paulo, e os municípios de Guaraqueçaba, Antonina e Paranaguá, no estado do Paraná.

Este complexo serve de berçário para diversos animais como camarão, ostras, caranguejos, mariscos, manjubas, tainhas e tantos outros que ali vivem e/ou se reproduzem aproveitando o grande aporte de nutrientes das águas doces e salgadas. Também abriga muitas aves, como o guará e alguns mamíferos terrestres, como o guaxinim. Toda esta riqueza levou a Unesco a reconhecer este Complexo Estuarino como uma das áreas úmidas mais importantes do Planeta, um Patrimônio Natural da Humanidade. Como já escrito em outro informativo, sua produtividade marinha é a terceira em importância do Atlântico Sul, segundo a União Internacional para Conservação da Natureza.

É claro que todo esse valor ambiental é acompanhado de grande importância sócio-cultural, uma vez que sua população é formada por remanescentes de quilombos, caiçaras e indígenas, símbolos da cultura brasileira, pescadores e agricultores por tradição. Nesta região a pesca é a principal atividade, praticada por cerca de 5 mil pessoas, que têm aprendido há décadas como conservar este ambiente.

Pesca no rio e no estuário

No mundo todo, a pesca está em declínio. Em muitos casos, isto ocorre devido à exploração excessiva e sem manejo dos recursos. O Lagamar ainda é uma exceção a esta realidade. Os recursos pesqueiros, apesar de serem utilizados há séculos, ainda estão presentes em quantidade produtiva. Muitos desses recursos são sazonais, o que levou os pescadores a se adaptarem a estes ciclos e praticarem diversas artes de pesca. Alguns comentam que hoje há mais pescadores do que antes, e isto torna um pouco mais difícil a pesca. Para contribuir com as atividades pesqueiras, algumas iniciativas de gestão e manejo foram iniciadas na região. O ordenamento pesqueiro foi construído junto aos pescadores, o que pode parecer óbvio, mas poucas vezes acontece de fato. Um esforço coletivo e descentralizado juntou o conhecimento local com o científico, conciliando diversos interesses resultando em portarias viáveis de serem aplicadas. A construção coletiva facilitou a efetivação destas propostas que foram revistas e aprimoradas conforme a necessidade. Foi o que aconteceu com a manjuba em Iguape, que após este processo passou a ser feita com artes de pesca e período adequados à sua conservação, refletindo em um aumento na produção. Essa é a base econômica do município e é praticada há décadas. Infelizmente, este processo de ordenamento ficou desestruturado e sem recursos financeiros, o que tem dificultado sua continuidade.

U.H.E. Tijuco Alto

O estuário depende do aporte de água doce e a construção da barragem pode comprometer a vazão do rio, por diversos motivos, alguns já explicados neste espaço, como o comprometimento da recarga das águas subterrâneas. Isto já aconteceu em outras barragens, mesmo distantes de estuários e um exemplo claro disto é o rio São Francisco, onde em sua foz a água salgada já está presente. No rio Ribeira, um outro grande e provável impacto associado à diminuição na vazão é a redução da quantidade de manjuba. A manjuba “sobe” o rio Ribeira para se reproduzir e depois retorna ao oceano Atlântico, assim se houver uma redução na quantidade de água doce esta espécie sofrerá mudanças no seu ciclo reprodutivo e isto levará a diminuição do seu estoque. É claro que há outros fatores ambientais relacionados com a reprodução da manjuba, mas sem dúvida a quantidade de água doce é um dos principais.

Durante as audiências públicas do licenciamento dessa U.H.E., em julho de 2007, um parecer técnico do Instituto de Pesca, que monitora o recurso e sua extração há anos, destacou este risco ao estuário e aos pescadores que têm a manjuba como principal fonte de renda, sustentando mais de 2.500 famílias apenas em Iguape. As respostas da equipe técnica da CNEC, empresa que realizou os estudos de impacto ambiental, foram insatisfatórias e o Ministério Público recomendou mais estudos. Infelizmente, no parecer final do Ibama este estudo, bem como os impactos apontados, não aparece. Além disso, o Ibama não atendeu às leis que determinam as políticas Nacional e Estadual (São Paulo) de Recursos Hídricos que claramente apontam à necessidade de realizar estudos de impacto na Bacia Hidrográfica toda, o que não foi solicitado nos estudos.

No entanto, há um parecer, no site de Tijuco Alto construído pela CNEC, contradizendo o estudo do Instituto de Pesca. Este parecer foi feito com os mesmos dados do outro estudo, ou seja, coletados pelo Instituto de Pesca, mas com análises estatísticas diferentes. Isso levou há alguns erros crassos como utilização de dados brutos que não poderiam ser a base das análises utilizadas. Assim, o Instituto de Pesca encaminhou novo estudo ao Ibama esclarecendo estes erros e reafirmando o alto risco do impacto sobre a manjuba. O Ibama ainda não respondeu aos questionamentos, mesmo que tenha se comprometido a isto no acordo de desocupação de sua sede em março.

Outros empreendimentos

Cabe a ressalva de que ainda há outras ações colocando em risco o estuário. Em 2005, o Ibama fechou uma área de cultivo de camarão exótico Litopenaeus vannamei em Cananéia. Esta espécie era cultivada em tanques escavados no manguezal. Isto implica em desmatar o mangue, cavar os tanques e esperar que a maré não leve nenhum destes camarões ou doenças para o estuário. Este cultivo está embargado, mas a área de manguezal que foi destruída não se recuperou, deixando de exercer suas importantes funções sociais, econômicas e ambientais.

Hoje, há um mercado para o pescado cultivado. Cananéia mais uma vez está vivendo este processo. Desde 2005, há uma proposta de cultivo de 4.500 toneladas/ano de um peixe (bijupirá ou parambiju), pela empresa TWB perto da ilha do Bom Abrigo, próximo à Estação Ecológica dos Tupiniquins (Ilha de Cambriú) e em frente ao Parque Estadual da Ilha do Cardoso, no município de Cananéia. O projeto, já aprovado, contém “alguns” erros graves, como afirmar que a Ilha do Bom Abrigo está no município de Ilha Comprida e não Cananéia. A partir da localização errada segue toda uma caracterização, ao menos, duvidosa. Embora a TWB afirme o contrário, a Colônia de Pesca de Cananéia e a Pastoral da Pesca não concordam com esse projeto. Não se sabe o impacto destes cultivos tanto pela localização (em frente a um bom abrigo) quanto pelo uso de ração, que “prevê” uma perda de 130 toneladas de ração/ano no fundo do mar, e isto seria um super aproveitamento da ração, uma vez que será utilizado 6.750 toneladas/ano. Ainda com estes problemas a área está em processo de licitação e no dia 14 de agosto deve ter definido quem será O USUÁRIO desta área da União, ou seja, de todos. Estamos vendo, mais uma vez, o prejuízo ambiental e do coletivo para favorecimento apenas econômico de um pequeno grupo com apoio, inclusive financeiro, do Estado.

Mayra Jankowsky

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