terça-feira, 1 de abril de 2008

Reportagem da Carta Capital sobre Tijuco Alto

Um vale de dúvidas

http://www.cartacapital.com.br/app/materia.jsp?a=2&a2=6&i=531

28/03/2008 18:41:46

Phydia de Athayde, de Cerro Azul (PR) e Ribeira (SP)

“Se o prefeito não estiver aqui, está na casa dele”, diz, tranqüilo, um funcionário da prefeitura de Cerro Azul, cidadezinha distante 85 quilômetros de Curitiba. Ali, como em tantos municípios pequenos e pobres do País, tudo é muito simples, caseiro, familiar. Prefeito, secretários, oposição e movimentos sociais se conhecem e se confundem. Questões decisivas para a comunidade local são discutidas em conversas na pracinha, nas esquinas da cidade. Ainda que o assunto seja o possível alagamento de 19 quilômetros quadrados de terras do município por conta da construção de uma barragem. Especialmente quando esta perspectiva ronda a região há 20 anos.

A estradinha sinuosa que leva até este canto do Paraná deve ser percorrida sem pressa. A cada curva, a paisagem se desdobra em mais e mais montanhas e plantações de pinheiros, até a beira da pista. Nas barrancas mais íngremes, onde o homem não consegue explorar, vê-se o que restou da mata nativa. Quase sempre escondida, acoberta o leito do Ribeira e de seus formadores. Uma preciosidade do trecho mais devastado do vale.

Cerro Azul, assim como outra dezena de cidades esquecidas entre São Paulo e Paraná, convive há duas décadas com o fantasma da construção da Usina Hidrelétrica Tijuco Alto, que represaria o rio Ribeira do Iguape, nas proximidades da cidade paulista de Ribeira, bem na divisa estadual. A Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), braço do Grupo Votorantim, um dos maiores conglomerados econômicos do País, ganhou a concessão para a usina em 1988, e desde então busca a liberação ambiental para o empreendimento. O processo arrasta-se por diferentes razões. Primeiramente, por equívoco da própria CBA, que recorreu a órgãos ambientais estaduais. Em seguida, por conta das mudanças na legislação, que passou a ser mais rigorosa. Hoje uma concessão como a que a CBA possui requer uma Licença Prévia ambiental.

Em duas ocasiões, em 1997 e 2003, o Ibama reprovou os Estudos de Impacto Ambiental (EIA/Rima) apresentados pela companhia. A empresa enviou um novo relatório em 2005 e recebeu parecer positivo do Ibama, embora ainda não conclusivo, em fevereiro último. A Licença Prévia ficou condicionada à resolução de duas pendências: uma referente ao dispositivo legal que permite a inundação de cavernas (há duas na área a ser alagada), e outra relativa à revalidação do direito de uso dos recursos hídricos do rio Ribeira, a cargo da Agência Nacional de Águas (ANA).

Do ponto de vista formal, o parecer do Ibama é o primeiro passo para a aprovação da obra. E foi o que motivou um protesto, na quarta 12 de março, em que mais de 400 pessoas ocuparam a sede paulistana da entidade para pressionar o órgão federal a rever sua posição. Há mais de dez entidades, entre organizações ambientais, sindicatos de trabalhadores rurais, colônias de pescadores e associações quilombolas, em campanha contra as barragens no Ribeira (não apenas Tijuco Alto, mas outros três projetos, ainda sem concessão). Questiona-se desde a real abrangência do dano ambiental até os efetivos riscos do empreendimento para a população que vive na região.

O diretor de Licenciamento Ambiental do Ibama, Roberto Messias, diz a CartaCapital acreditar que grande parte desses questionamentos é “recorrente e já foi considerado em audiências públicas”. Ele afirma que o órgão analisou a documentação apresentada pela CBA e, depois de reuniões, vistorias e ajustes técnicos, considerou que todos os aspectos foram devidamente abordados: “O Ibama analisou e aprovou Tijuco Alto. Em relação às outras três usinas, não houve análise aprofundada, mas há indicativos de que não são viáveis ambientalmente”.

As dúvidas em torno da decisão final não evitaram prejuízos aos moradores, decorrentes da legislação pela qual a detentora da concessão era obrigada a comprar ao menos 70% das terras alagáveis, o que foi parcialmente feito. Resultado: a saída de uma parcela da população ribeirinha, desestruturando ainda mais a frágil economia regional. Este passivo é notado nos arredores das cidades paranaenses de Cerro Azul, Adrianópolis e Doutor Ulysses, e das paulistas Ribeira e Itapirapuã Paulista.

As raízes da estagnação econômica do Vale do Ribeira, que começa neste trecho ao norte do Paraná e segue por todo o extremo sul de São Paulo até desaguar em Iguape, são anteriores à polêmica em torno da usina. No trecho paulista, o vale fica na região administrativa de Registro, que apresenta os piores indicadores sociais do estado (responde por 0,3% do PIB paulista). Ao mesmo tempo, ostenta as melhores taxas de preservação ambiental, graças a 19 Unidades de Conservação que, nos últimos anos, têm atraído um número crescente de turistas.

Para o economista Wilson Cano, professor do Instituto de Economia da Unicamp e especialista em economia regional, o Vale do Ribeira, como o do Paraíba e o Pontal do Paranapanema, não tem condições de acompanhar a média estadual de desenvolvimento. As principais causas são a topografia acidentada, as limitações da produção agrícola (o principal produto é a banana) e as áreas de preservação. “Esta é uma região limitada, que não precisa de um plano de desenvolvimento econômico, mas sim de um plano social e ecológico sério. Não há outra saída”, avalia Cano.

Declarado Patrimônio Natural da Humanidade em 1999, o Vale possui 2,1 milhões de hectares de florestas, que representam 21% dos remanescentes de Mata Atlântica do País, além de 150 mil hectares de restingas e 17 mil de manguezais. Na região onde a CBA pretende construir sua usina, a degradação ambiental é evidente e restam poucas áreas preservadas.

O Instituto Socioambiental (ISA), uma organização não-governamental dedicada ao meio ambiente, atua há vários anos nas comunidades tradicionais do Vale, espalhadas rio abaixo em áreas mais preservadas. Credita a elas e às Unidades de Conservação papel fundamental na resistência ao avanço do desmatamento e do uso indevido dos recursos naturais.

Na pacata Cerro Azul, há representantes dos dois lados dessa disputa. Na administração pública e nas histórias de vida locais, há marcas da letargia de quem espera, há 20 anos, uma decisão que tarda a chegar. O prefeito, Dalton Luiz de Moura Costa (PMDB), declara-se a favor da barragem, por conta dos royalties estimados em 1 milhão de reais ao ano para a cidade. Também pela perspectiva de que os 1,2 mil empregos que poderão ser criados na construção da usina sejam ocupados por moradores do município, o mais atingido entre os cinco que seriam parcialmente alagados.

Costa tenta minimizar a interferência do que chama de “ambientalistas profissionais” nas audiências públicas realizadas na cidade. Para o prefeito, a obra não trará muitos prejuízos: “Quem conhece o Ribeira sabe que ele já teve duas a três vezes mais água. O rio está sumindo por causa do desmatamento e das plantações de pínus e eucalipto, que secam a terra”, diz. “Aqui tinha capivara, paca, cutia. Hoje, quase não tem passarinho. Por causa dos empregos, royalties e turismo, sou a favor.”

O prefeito não sabe explicar o que acontecerá com os peixes, que diz serem escassos, mas defende a exploração da pesca esportiva como uma alternativa econômica. Ele também não enxerga incoerência, para não dizer falta de ética, e alardeia: “Para vocês verem, o meu secretário de Turismo é filho de dona Cida, a principal funcionária da barragem, a supervisora da CBA na cidade”.

Desde fevereiro do ano passado, Alexandre Dantas responde pelo turismo em Cerro Azul. A mãe é secretária-administr

ativa da CBA. O pai de Dantas também trabalha na empresa. “Ele é lobista, compra terras para a companhia, faz esse tipo de coisa”, explica o secretário Dantas, com a inefável segurança de quem desconhece as implicações do conflito de interesses. E acrescenta, com olímpica candura, que nunca houve “nenhum tipo de atrito”. O que poderá ocorrer na cidade: “Perderemos o rafting, que atrai 2 mil pessoas por ano, mas ganharemos esportes náuticos como pesca, jet ski e vela.” Lembrado de que o relevo acidentado da região resultaria numa represa estreita, emenda: “A vela pode subir e descer, não precisa navegar lateralmente”. Ele comemora a criação de um parque nos arredores do lago, mas pondera: “Se a barragem sair mesmo, haverá muitas conseqüências sociais. O trabalho de realocar os possíveis expulsos não foi feito, pois não se sabe se haverá usina ou não”.

Na pracinha de Cerro Azul, está Francisco Eudes da Silva, presidente da Associação Sindical dos Trabalhadores Rurais na Agricultura Familiar (Asstraf), que representa 350 agricultores unidos na campanha contra a barragem. Ele atua em outras duas entidades e, obstinado, personifica a oposição ao empreendimento. “O rio não é público? A estrada não é pública? Por que uma hidrelétrica pode mais que o povo?” A Asstraf e outras oito organizações no Paraná são contra Tijuco Alto, e têm apoio da Secretaria de Estado do Meio Ambiente e de Recursos Hídricos e do Instituto Ambiental do estado.

Para ilustrar os danos sociais que quer evitar, Silva conduz a reportagem a um passeio nas margens do rio. Na estradinha de terra, ladeada por matagais e algumas áreas verdes, a poeira branca aponta a origem calcária do solo. Em muitas porteiras, uma placa informa: “Propriedade CBA. Proibida a entrada”. Ele reclama: “Isso tudo está parado há anos. Compraram, tiraram os agricultores da terra boa e ninguém produz nada”.

Avista-se o rio. O relevo é montanhoso. Surgem plantações de subsistência, chuchu, maracujá e laranja, que se revezam com trechos de mata e pastagens. Ao lado das roças, tubulações mostram que a água é bombeada para irrigação. Os irmãos Leonel Valente dos Santos e Joaquim de Matos trabalham como meeiros no local (a despeito do nome, recebem apenas 30% do que produzem). Santos diz que era adolescente quando funcionários da CBA fincaram estacas de concreto, demarcando onde a água chegaria, morro acima. Ele duvida que a barragem se torne realidade, mas decreta: “Se alagar mesmo, para nós acaba tudo. Vamos parar na periferia de Curitiba, não tem jeito”. O irmão concorda, e os dois citam, com pesar, o Quarteirão, empreendimento imobiliário abandonado depois da notícia da barragem. “Era uma cidadinha linda. Está tudo acabado.”

Adiante, um aglomerado de árvores e arbustos floridos cria um ambiente mais úmido e fresco. Foi plantado há 28 anos por Adelina Jacomitt, quando ela e o marido, Orlando Simioni, chegaram às margens do Ribeira. O casal de idosos deixou Bocaiúva (PR) devido à construção da barragem de Capivari-Cachoeira, no fim dos anos 1960. Chegaram a Cerro Azul em 1980, depois de amargarem algum tempo em Curitiba. Oito anos depois, foram avisados de que a água novamente cobriria suas terras. Resignados, convivem com a angústia da incerteza.
“Na minha cabeça, o benefício vai ser só para a família Ermírio de Moraes”, diz Adelina, referindo-se aos donos do Grupo Votorantim. “Aqui, nunca faltou o de comer para os nossos sete filhos. A gente tira muito dessa terra. Berinjela, mimosa (mexerica), chuchu, verduras, mandioca, abacaxi, aipim. Criamos galinhas e porcos, tudo se aproveita.” Orlando, que tem 77 anos e sofre de câncer, é menos falante, mas eleva a voz ao dizer: “Não saio daqui! Pra bater cabeça aonde? Viver nas favelas? O problema é que o Vale do Ribeira não tem valor nenhum”.

A CBA pretende reassentar 200 das 578 famílias atingidas, e indenizar as demais.

Raul Silva Telles do Valle, advogado do ISA, acusa o Ibama de fugir da discussão sobre o interesse social do empreendimento. “Qual é a utilidade pública de uma barragem que produzirá energia exclusivamente para a CBA? Por que a CBA tem mais direito de utilizar a terra do que quem vive e depende da região? Somos contrários à barragem porque todos os riscos e prejuízos serão arcados pelos moradores.”

A SOS Mata Atlântica, outra ONG que atua na área, também integra a campanha. Malu Ribeiro, coordenadora da Rede de Águas da ONG, faz um diagnóstico do Ribeira: “Na cabeceira, quase não há mais matas ciliares. Nos últimos anos, o rio vem perdendo a água que abastece algumas cidades ao longo do Vale e, apesar de considerada limpa, está em estado de alerta por apresentar sinais de esgoto doméstico e agrotóxicos”. Ela considera que a porção de vegetação alagada não seria o pior problema ambiental de Tijuco Alto. Menciona o risco de contaminação por chumbo de rejeitos de mineração (que a CBA garante não existir), o impacto às cavernas da região alagada e adjacências e, principalmente, as conseqüências de Tijuco Alto rio abaixo. “Não há como compensar ambientalmente o volume de água retido nos 142 metros de paredão. Isso ficará indisponível para sempre e é vital para o equilíbrio da biodiversidade de toda a região.”

As queixas das entidades, no aspecto ambiental e social, sensibilizam o Ministério Público Federal. A procuradora regional da República, Maria Luiza Grabner, acompanha Tijuco Alto há mais de dez anos: “Há um subdimensionamento da área de influência da obra, e uma falha na participação pública, que até hoje não incluiu nas audiências a população de Cananéia, no litoral paulista, que depende da pesca artesanal nas águas do Ribeira. O País tem uma legislação ambiental elogiável, dispositivos legais e constitucionais que são garantias, e convenções internacionais destacadas. É preciso uma ação afirmativa de aplicação da lei”.

A CBA pensa diferente. “Nós sempre acreditamos que Tijuco é um empreendimento viável ambientalmente, o que foi corroborado com o parecer técnico do Ibama publicado recentemente”, contrapõe José Geraldo dos Santos, diretor-responsável pela área de energia da CBA.

Procurado por CartaCapital, ele afirma que, nos últimos 20 anos, a CBA já investiu 25% do total do projeto (estimado em 500 milhões de reais) em aquisição de terras, maquinários, consultorias, projetos e análises técnicas.

Nesse intervalo de tempo, o modelo do setor elétrico brasileiro mudou. Hoje, permite a grandes consumidores, como a CBA, comprar energia excedente de qualquer ponto do País. Diante disso, Tijuco Alto ainda é necessária para a empresa? “Ainda dependemos de uma parcela de energia comprada de terceiros. Com a energia própria de Tijuco, a CBA deixará de adquirir essa parcela no mercado e liberará a mesma energia para a sociedade e outros setores da economia”, explica Santos.

Luiz Antônio Dias Batista (PSDB), três vezes prefeito da cidade paulista de Ribeira, irmão do atual prefeito e hoje presidente da Câmara de Vereadores, afirma ter mudado de idéia em relação ao empreendimento. “No início, ficamos otimistas porque a cidade ganharia cerca de 12 milhões de reais anuais por conta do ICMS. Depois, percebemos que isso não iria acontecer. Então, somos contra”. Ele explica que a obra traria um ônus social muito grande. “Temos 3.440 habitantes, não há estrutura para recebermos mais 2 mil a 4 mil pessoas em razão da barragem. Isso vai perturbar a nossa paz. Temos o privilégio de dormir com as janelas abertas, e essa qualidade de vida, apesar da nossa pobreza, vai se perder.”

Atílio Valentim Fumis, funcionário da prefeitura, nos conduz ao trecho exato da barragem. A paisagem é mais vistosa que em Cerro Azul, pincelada por roças de banana e chuchu. Ele aponta, na propriedade de 50 alqueires que administra para o sogro, o ponto do morro a ser atingido pela água. “Se fizerem a barragem, eu mudo de Ribeira”, diz com convicção. “E eu sou doido de morar embaixo duma caixa-d’água desse tamanho?”

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