Por Rui Kureda
Uma das conseqüências mais importantes da vitoriosa ocupação da sede do Ibama de São Paulo, no dia 12 de março passado, foi a abertura de negociações entre a direção do Ibama e os representantes do movimento de resistência à construção da UHE Tijuco Alto. As conversas realizadas durante os dias 12 e 13, resultaram em vários compromissos assumidos pela direção do órgão.
Entre outros pontos importantes, o Ibama comprometeu-se a não emitir qualquer posição final quanto à viabilidade da obra sem antes avaliar os questionamentos levantados pelas comunidades do Vale do Ribeira. O órgão se comprometeu a acolher até o dia 17 de abril sugestões e propostas ao Parecer Técnico emitido pelo Ibama no final de fevereiro. Além disso, seria realizada uma reunião no dia 14 de março para definir alguns detalhes, entre os quais a realização de uma reunião pública no Vale do Ribeira.
Contudo, o Ibama não vem cumprindo com a sua palavra. Uma reunião marcada para o dia 14 foi adiada para o dia 18, que também foi desmarcada. Até os primeiros dias de abril ainda não havia sido
definida uma nova data.
No final de março, a revista Carta Capital publicou uma extensa matéria sobre a Barragem e a resistência dos moradores do Vale do Ribeira (“Um Vale de Dúvidas”). A uma certa altura, após apontar os inúmeros questionamentos apresentados pelos moradores e movimentos,
lemos:
O diretor de Licenciamento Ambiental do Ibama, Roberto Messias, diz a Carta Capital acreditar que grande parte desses questionamentos é "recorrente e já foi considerado em audiências públicas". Ele afirma que o órgão analisou a documentação apresentada pela CBA e, depois de reuniões, vistorias e ajustes técnicos, considerou que todos os aspectos foram devidamente abordados: "O Ibama analisou e aprovou Tijuco Alto. Em relação às outras três usinas, não houve análise aprofundada, mas há indicativos de que não são viáveis ambientalmente.
Diante de declarações tão categóricas, antes de realizar uma reunião pública e antes de receber todos os questionamentos, fica uma grande dúvida quanto à sinceridade da direção do Ibama nas negociações. E ao mesmo tempo nos coloca um grande dilema sobre o caminho a ser seguido
na luta para impedir a construção da UHE Tijuco Alto.
Além disso, nos leva a uma reflexão que transcende a luta específica no Vale do Ribeira, abarcando a luta geral que se trava no país contra as várias UHEs que estão em processo de construção.
O licenciamento segundo o Ibama
Quando Messias afirma que grande parte dos questionamentos é recorrente e que o “Ibama já analisou e aprovou Tijuco Alto”, ele não se pronuncia enquanto um técnico que tem a obrigação de adotar uma
postura marcada pela objetividade, mas como alguém cujo papel é o de viabilizar a construção da UHE. Não surpreende, pois na edição da Folha de São Paulo do dia 23 de março (“Licença atrasa usinas hidrelétricas, diz Bird”) ele afirma que "Mais do que trabalhar com ‘pode ou não pode’, temos de procurar buscar o ‘como pode’“.
Mas não foi apenas nessa ocasião que o diretor de Licenciamento Ambiental expressa tais opiniões. No dia 8 de janeiro, o site da Agência Brasil disponibilizava um texto sobre licenciamento ambiental (“Ibama quer acelerar licenças ambientais em 2008”) , e ali podemos ler a frase contundente: “O que durava 100, vai durar 30 dias; o que durava 1000, vai ser feito em 300”.
Pode parecer mero discurso, mas o senhor Roberto Messias mata a cobra e mostra o pau. Quando os projetos das UHEs do Rio Madeira estavam travados, devido à avaliação de técnicos do Ibama que exigiram novos estudos e criticaram o EIA/RIMA pelo "inaceitável subdimensionamento dos problemas", o senhor Messias decidiu intervir e salvar os projetos.
Ele “analisou” todas as restrições e produziu o Memorando 379/2007, no qual apresentou suas considerações e um elenco de recomendações cautelares. O memorando foi encaminhado pelo próprio à
Coordenadoria-Geral de Energia Elétrica, no dia 4 de julho, quarta-feira. Já na segunda-feira, dia 9 de julho, o mesmo senhor Messias, na função de Diretor de Licenciamento do Ibama, assinou o Parecer Técnico Conclusivo que afirmava que "as medidas apontadas como necessárias no parecer 14/2007” haviam sido aceitas e incorporadas pelos autores dos projetos. Obviamente, recomendando a concessão da Licença Prévia.
Não se pode colocar em questão a competência e a polivalência do senhor Roberto Messias. Mas o que deve se questionar é o seu açodamento, a obsessão com que persegue a rapidez na concessão das LPs, como se o tempo pudesse ser o critério supremo em um processo que envolve, além das riquezas naturais, a vida de milhares de pessoas.
O MMA e o licenciamento ambiental
Mas fosse um problema apenas do senhor Roberto Messias e do Ibama, bastaria exigir mudanças nos procedimentos ou, em último caso, a sua saída do cargo de Diretor de Licenciamento Ambiental do Órgão. Mas, infelizmente, não se trata disso.
No site do MMA está disponibilizado um documento pouco conhecido, que tem o título “Plano Plurianual 2008-2011 - Orientações Estratégicas“ (Versão 5.1 – 17/07/2007 – Final). O Objetivo Setorial 2 trata do Sistema de Licenciamento Ambiental, e seu objetivo é “Aprimorar o licenciamento ambiental e desenvolver instrumentos de planejamento e gestão ambiental em apoio ao desenvolvimento sustentável”. O nome do objetivo não deve nos enganar. Não se trata de um objetivo cujo parâmetro seja melhorar a qualidade do processo de licenciamento ambiental na perspectiva da sustentabilidade socioambiental. Ao contrário: “O Sistema de Licenciamento precisa atingir um novo patamar adequado para o atendimento às necessidades dos setores de infraestrutura da política de governo. Para tanto, é necessário que se realizem aperfeiçoamentos para uma melhor sistematização de critérios e procedimentos operacionais e administrativos do licenciamento
ambiental.”
É verdade que existem, ao longo do documento, preocupações com o meio ambiente e com uma maior participação social. Mas estas empalidecem diante do seu real propósito, que transparece em trechos como “Acompanhar e apoiar, em nível nacional, o licenciamento dos empreendimentos constantes no Plano de Aceleração do Crescimento – PAC”.
Mas mais do que qualquer coisa, tudo fica claro, quando lemos os Indicadores de Desempenho para avaliar a concretização dos objetivos propostos:
٭Tempo de análise para manifestação sobre os pedidos de licença ambiental:
٭ Tempo de análise para manifestação final sobre a viabilidade ambiental de empreendimentos/atividades menor ou igual a 1 ano, após a entrega do estudo ambiental pelo empreendedor;
٭ Tempo de análise para manifestação final, visando autorizar a implantação do empreendimento/atividade, menor ou igual a 6 meses, contado a partir da data do pedido da licença de instalação;
٭ Tempo de análise para manifestação final, visando o início da operação do empreendimento/atividade, menor ou igual a 4 meses, contado a partir da data do pedido de licença de operação.
* Implantação de 2 novos instrumentos de gestão ou de planejamento ambiental, de suporte ao licenciamento ambiental, em 4 anos.
Aqui percebemos que o senhor Roberto Messias não age por conta própria, contrariando normas vigentes no MMA. Pelo contrário, é um aplicador competente, obstinado e leal de diretrizes que foram estabelecidas pelo próprio Ministério do Meio Ambiente.
Luta contra a UHE Tijuco Alto: que caminho?
Essas digressões são importantes porque nos dão uma dimensão mais clara do que enfrentamos. Acima de tudo, mostram que não devemos nos surpreender com as declarações do senhor Roberto Messias sobre Tijuco Alto. Não deve nos surpreender a desconsideração do Ibama com a crítica feita por movimentos do Vale do Ribeira ao EIA/RIMA da Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), por não abarcar toda a Bacia Hidrográfica como obriga o CONAMA, deixando de lado Iguape e Cananéia. Segundo o Ibama essas cidades não estão na área de impacto. Mas será papel do órgão pressupor respostas em vez de exigir o cumprimento de normas e leis existentes para então averiguar, com toda a objetividade, se essas cidades sofrerão ou não impactos advindos da
construção da UHE?
Também não surpreende que, mesmo sendo a UHE Tijuco Alto a única grande UHE construída em ambiente cárstico, o que coloca riscos graves que devem necessariamente ser avaliados, o Parecer Técnico do Ibama se restrinja a considerações genéricas, distantes dos padrões de avaliação utilizados em outros países, como os Estados Unidos. E que no grupo técnico que elaborou o Parecer não encontremos nenhum geólogo...
É difícil afastar a impressão de que estamos diante de uma decisão tomada. Uma decisão política, diga-se de passagem, de construir uma UHE para favorecer uma única empresa – eletrointensiva – pagando o preço da devastação ambiental e do sofrimento de milhares de pessoas que fazem parte das comunidades do Vale do Ribeira, como quilombolas, pescadores e ribeirinhos.
A abertura de um canal de negociações foi uma conquista, cujo significado não podemos deixar de lado. Mas é possível, diante de tudo que foi exposto, acreditar que alcancemos a vitória através de negociações? Seria otimismo demais. O que se pode conseguir negociando com o Ibama é mitigar os impactos da barragem. Ali, podemos apresentar sugestões e comentários a um Parecer Técnico que já aprovou, como assinalou o senhor Roberto messias, o projeto da CBA de Antonio Ermírio de Moraes, um paladino da luta contra o licenciamento ambiental.
Mitigar tem sido uma palavra cada vez mais usada nos últimos tempos. Expressa a situação desfavorável em que nos encontramos diante do trator desenvolvimentista que não toma conhecimento de greves de fome e mobilizações? Em parte, sim. Se não podemos alcançar o objetivo que
buscamos, temos que minimizar os impactos. Mas também, de maneira preocupante, a mitigação vem ganhando uma conotação estratégica, como se fosse o nosso papel simplesmente mitigar impactos, minimizar perdas, diminuir a destruição e a miséria negociando indenizações.
Devemos, sim, discutir medidas que mitiguem impactos. Mas não pode ser o centro de nossa intervenção. Não é possível mitigar, mesmo com indenizações, as vítimas que serão desterradas dos locais onde suas famílias viveram por várias gerações. Suas vidas serão dilaceradas,
destruídas. Serão obrigadas a viver na periferia das cidades, onde as aguardam todas as mazelas e problemas sociais urbanos. Não é possível mitigar a destruição cultural que uma barragem como a de Tijuco alto e outras causam, representando uma perda da diversidade cultural.
E as vítimas são, na sua esmagadora maioria, negros, caiçaras, indígenas. São vítimas do racismo ambiental que é um elemento estrutural nesse modelo energético que é a cara do modelo econômico
excludente que vigora, com pequenas alterações, no nosso país há mais de um século.
Lutar por mitigação é preciso. Mas não basta. O nosso objetivo é barrar a UHE de Antonio Ermírio. E essa meta não pode ser esquecida, nem mesmo quando estamos na mesa de negociações. Mas como alcançar o nosso objetivo?
A ocupação da sede do Ibama demonstrou a sua força. Mostrou que uma ação como aquela, envolvendo a ação coletiva de centenas de ativistas, consegue mais do que qualquer petição ou abaixo assinado. Manter a mobilização, ampliá-la, esclarecendo as populações do Vale do Ribeira, divulgando e nacionalizando a luta, criando redes de apoio e solidariedade, disputando a opinião pública, vinculando-nos a outros movimentos sociais, são alguns exemplos do que pode e deve ser feito. Sem descartar as audiências, petições e negociações.
Como afirmou André Murtinho, um jovem ativista do Coletivo Educador do Lagamar de Cananéia e do movimento de resistência à Barragem de Tijuco Alto: “A ocupação do Ibama foi só uma amostra do que os movimentos podem fazer (...) Temos, hoje, uma capacidade de articulação estadual muito boa, principalmente pelo forte apoio da Via Campesina”.
O que não podemos é perder a nossa mobilização e a independência diante dos órgãos como o Ibama e o MMA. Quando desaparece a linha que nos separa do Estado e do governo, quando os interesses se mesclam, significa trilhar o caminho da derrota.
Conclusão
Essas reflexões a partir da luta contra a barragem de Tijuco Alto se estenderam para além da luta travada no Vale do Ribeira. E não poderia ser diferente. O padrão é o mesmo: Barra Grande, Madeira, Tijuco alto, entre tantos outros casos.
Mas as sucessivas derrotas e as dificuldades que estamos enfrentando só podem ser compreendidas e resolvidas a partir de uma perspectiva mais abrangente. Para terminar gostaríamos de apontar alguns pontos essenciais que, na nossa opinião, deveriam ser enfrentados por todos
nós em um debate aberto e sério.
Já é lugar comum no movimento socioambiental a crítica ao desenvolvimentismo predatório, além de socialmente excludente, do governo federal. O que não se discute mais profundamente – e deveria
ser discutido – é em que medida o próprio MMA deixou de ser um obstáculo a essa política e não se tornou um instrumento a seu serviço. No caso específico do Ibama, seguindo a sua prática nestes
últimos anos e declarações como as do seu diretor de licenciamento ambiental, não parece haver dúvidas.
Não é nosso propósito debater tal tema, muito menos realizar uma discussão que achamos conveniente e necessária sobre o significado de termos corriqueiros como “desenvolvimentismo” e “desenvolvimento sustentável”. Mas apenas queremos apontar a importância de realizar esse debate, que pode incidir de maneira decisiva na nossa compreensão e, principalmente, na nossa intervenção.
Mas para além de problemas políticos conjunturais, é preciso rever algumas questões que fazem parte do nosso “senso comum”. Afirma-se muitas vezes que a nossa legislação ambiental é avançada, e que bastaria ser implementada. Lembremos que nada do que está sendo feito fere a legislação. Mas esta contém ambigüidades, ausências, falhas e necessidade de aprimoramento. Sobretudo, carecemos de mecanismos que possibilitem a concretização de normas importantes.
Há ainda o papel dos órgãos colegiados, que são hoje, os principais espaços de participação da sociedade civil em consultas e tomadas de decisão. Não há nenhuma legislação específica que normatize nem a participação popular e nem os órgãos colegiados. Uma análise breve dos órgãos nos permite ver que não há uniformidade e nem padrão quanto à sua organização, regimento, formas de escolha de representantes e proporção da sociedade civil.
No caso das UHEs, deveríamos levar em conta que a sociedade civil só é chamada para opinar na fase final dos projetos, isto é, no processo de licenciamento. Mas nas fases anteriores ao licenciamento, desde a elaboração de estudos de planos de expansão de geração de e transmissão de energia elétrica à realização do inventário hidrelétrico, a sociedade não é consultada.
Temos agido como bombeiros que correm, afoitos, para apagar incêndios. Acontece que os focos de incêndio estão se proliferando rapidamente, e outros estão sendo preparados sem o nosso conhecimento...
Não será hora de enfrentar tais discussões, mesmo que isso signifique cortar na nossa própria carne?
quinta-feira, 24 de abril de 2008
REFLEXÕES A PARTIR DA LUTA CONTRA A UHE TIJUCO ALTO
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textos e manisfestos,
UHE Tijuco Alto
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